Na região de Lábrea, no estado do Amazonas, estava grassando uma epidemia de uma doença não identificada de pronto. Os órgãos oficiais de saúde resolveram enviar àquela região um grupo de médicos e pesquisadores, com vistas a diagnosticar o que estava ocorrendo.
Foi solicitado à Base Aérea de Belém que fornecesse a essa missão transporte aéreo, que só poderia ser realizado por avião CATALINA, pois não havia campo de pouso naquela cidade nem em suas proximidades.
Em novembro de 1950 o CATALINA 6527, decolou de Belém levando a comitiva médica, tendo como pilotos os tenentes Pereira Sobrinho e Coelho de Souza. O avião pousou em Santarém, onde foi abastecido a pleno, pois havia pouca gasolina em Manaus, onde seria reabastecido. Com seus tanques cheios o avião tornou-se pesado, acima de seu peso normal de operação na região amazônica.
A pista de Santarém era coberta por uma tênue pintura asfáltica tinha pouco mais de 800 metros e a direção do vento indicava que a decolagem deveria ser feita no sentido da floresta para o rio. O piloto, após as verificações e o cheque de motores costumeiros, entrou na pista, alinhou o avião e aplicou plena potência em ambos os motores. O CATALINA iniciou a corrida de decolagem com aceleração menor que a normal, devido ao elevado peso. Próximo ao fim da pista a garçaa decolou, iniciando uma subida lenta.
Quando o trem de pouso estava sendo recolhido, o motor direito deu umas tossidas e teve perda de potência quase total. O mecânico, bastante experiente e profundo conhecedor do CATALINA, identificou logo a causa da perda de potência: a pressão de gasolina nesse motor havia caído para zero.
Imediatamente começou a acionar vigorosamente a bomba manual de combustível que ficava no painel de seu pequeno cubículo, o que permitiu que o motor funcionasse intermitentemente, mas com pouca potência, pois o débito de gasolina enviada pela bomba manual não era suficiente para a operação normal do motor.
O piloto, ao perceber a anormalidade, procurou manter o avião em voo e conseguiu desviar da chaminé de tijolo da usina termoelétrica da cidade. Ao se aproximar da margem do rio Tapajós, comandou baixar os flutuadores, e seguiu desviando dos mastros de algumas embarcações ancoradas diante da cidade. Conseguiu fazer um pouso n’água quase normal, sem nenhum dano ao avião ou às pessoas que estavam a bordo, tripulantes e passageiros.
A válvula seletora de combustível foi colocada na posição “cross-feed” (alimentação cruzada) e o motor voltou a funcionar novamente.
Aí começaram suas dificuldades. Poucos pilotos conhecem a dificuldade de taxiar um avião n’água, pois não há leme hidrodinâmico. A manutenção de uma direção em linha reta é bastante difícil quando há vento e/ou correnteza.
O avião, devido à grade superfície da cauda, em particular da deriva vertical, tende a “filar ao vento”, isto é, girar sua proa em direção de onde o vento sopra. A compensação da força para neutralizar essa tendência é obtida a custa de aplicação de mais potência no motor “de dentro”.
O taxi deve ser feito na menor velocidade possível, principalmente quando o aviãó se aproxima para pegar o cabo de uma bóia ou de um flutuante, ou ainda para lançar a âncora ou para encalhar numa praia.
Após o piloto ter obtido o domínio da direção pelo emprego de dessimetria de potência, ele utiliza o artifício de “blimpar” os magnetos, ou seja, ele corta os magnetos pela chave mestra; quando as hélices estiverem prestes a parar, o piloto religa os magnetos pela chave mestra, e assim sucessivamente.
Com isso o piloto consegue reduzir drasticamente a velocidade do avião n’água. Os aviões, quando estão em terra e com os freios aplicados, os motores no “relanti” não permitem que se dê conta da força de tração desses motores, mesmo em marcha lenta. Mas a situação se modifica significativamente n’água.
A força de um motor em 500 RPM é suficiente para arrebentar um cabo de bóia ou de flutuante ao qual o avião estiver preso.
Os quatro primeiros aviões decolaram com pequeno intervalo de tempo. O 6520 tripulado pelos pilotos Tenentes HOFMANN, SIUDOMAR e CAVALCANTI foi o último a decolar, pois era o avião reserva. Subiu para 9.000 pés, acima de um compacto colchão de nuvens e passou a voar sob um céu azul, sem turbulências.
A bóia de Santarém ficava localizada em um remanso abrigado, próximo ao porto. Um remanso sempre é enganador, pois muitas vezes a correnteza do rio que vai em uma direção, nas proximidades do remanso parte dela muda de direção, como se fosse formar um grande rodamoinho.
Além disso, o cabo da bóia não era verificado, utilizado nem trocado há muito tempo, pois tanto os CATALINA da FAB como os da PANAIR só operavam do aeródromo. Raramente um PBY-5 (hidro) pousava em Santarém.
Apesar de todas as dificuldades o piloto, experiente em hidro-aviação pois havia completado nos EUA seu curso de Piloto Naval e Piloto de Patrulha voando o PBM MARTIN, talvez o maior hidro-avião militar existente, conseguiu se aproximar da bóia e, com grande habilidade, prender o avião ao cabo. O motor só seria cortado quando houvesse a certeza de que o avião estava “amarrado”.
Pela inércia o avião ainda se deslocou um pouco à frente, o que foi suficiente para arrebentar o cabo apodrecido. Novas peripécias para sair da área onde se encontravam vários barcos e ser socorrido por uma lancha que, com um cabo novo, rebocou o avião atá a bóia.
Um breve relato sobre os equipamentos indispensáveis para atividades de manutenção do CATALINA n’água. Cada avião levava no compartimento do túnel duas pequenas plataformas, de uns dois metros de comprimento por uns 40 a 50 centímetros de largura.
Elas possuíam uns cabos de aço com um gancho em cada ponta os quais se adaptavam a uma espécie de ilhós existentes de ambos os lados da carenagem de cada motor. Uma vez fixada a plataforma, poder-se-ia trabalhar no motor sem a necessidade de outro equipamento, como escada ou bancada, mas cada plataforma comportava no máximo duas pessoas.
Para se trabalhar em um motor com o avião parado n’água, amarrado em uma bóia ou cabo de flutuante ou ancorado, o equipamento mais importante que os mecânicos utilizavam era, ainda que pareça incrível, um ROLO DE BARBANTE. Cada ferramenta era amarrada numa ponta do barbante e a outra ponta era presa numa argola de um cinto, tipo “cinto de bombeiro”, o que fazia com que o mecânico se assemelhasse a uma marionete!.
A razão parece óbvia: cada ferramenta que caísse n’água era perdida e o mecânico tinha que se acertar com o chefe da seção de ferramentas, pois todas as ferramentas eram fornecidas mediante “cautela”.
Se trabalhar em um motor n’água já era uma aventura, imagine-se uma troca de motor. Para essa operação, o esquadrão possuía um equipamento formado por quatro hastes de aço, as quais se fixavam em ilhoses também existentes na parte superior da asa e no suporte do motor.
Na ponta reforçada desse equipamento, que lembrava uma pirâmide horizontal, era instalada uma roldana por onde passava uma corrente, essa comandando um conjunto de engrenagens redutoras de demultplicação que permitiam, com menos esforço, elevar o motor até sua posição de instalação. Consta que, durante todo o período em que CATALINA operou na Amazônia, apenas uma vez ocorreu uma troca de motor n’água.
Mas voltemos ao 6527. Após prender o avião no novo cabo da bóia, os mecânicos, com o auxílio das plataformas, iniciaram o trabalho de pesquisa sobre a origem da pane. Foram retiradas as carenagens do motor e feitos alguns testes. Logo foi identificada a causa da pane: o eixo da bomba de gasolina havia partido.
Enquanto os mecânicos trabalhavam sob o sol inclemente, foi enviada mensagem ao Esquadrão em Belém solicitando a remessa de uma bomba e, se possível, outro avião para continuar a viagem para Lábrea.
Com eu era o Oficial de Material do Esquadrão, fui escalado para levar outro avião, o 6526, e entregá-lo à tripulação do 6527 para a continuação da viagem. Levei a bordo do 6526 uma pequena equipe de especialistas equipada para efetuar o reparo no 6527. Pousei no aeroporto de Santarém lá pelas 11:00 da manhã, quando então entreguei o 6526, no aeroporto, para o prosseguimento da missão.
O avião decolou em seguida para Manaus e nós nos dirigimos para o local onde estava o 6527. Em lá chegando, constatamos que não era possível trabalhar em determinadas horas, devido ao fato de que as chapas do avião estarem muito quentes, impossibilitando que nelas se tocasse. Decidimos trabalhar um pouco entre 17:00 e o por do sol e, no dia seguinte, iniciar os trabalhos no nascer do sol e prosseguir até quando a temperatura das chapas permitisse.
Terminada a troca da bomba, dei partida nos motores e soltei o cabo da bóia. A pressão da gasolina estava normal permitindo que eu decolasse e voasse cerca de 30 minutos sobre o aeródromo, onde pousei. Em seguida regressei a Balém.
Essa são algumas peculiaridades do CATALINA. Em caso de pane, havendo um rio ou lago nas proximidades, ele pode pousar sem grandes riscos. Em compensação, fazer serviços de manutenção no avião, pousado n’água, é trabalho complicado e lento, devido à exigüidade de espaço.
Autor Cel. Av. José de Carvalho