Bendito Açude

Para melhor compreenção sobre o que se passou, é necessário uma pequena explicação sobre o sistema de combustível do CATALINA. Existiam apenas dois tanques, um em cada asa, com a capacidade de 875 galões cada, perfazendo um total de 1750 galões.

A saída de combustível de cada tanque era feita por uma mangueira reforçada ligada diretamente a uma válvula de distribuição de combustível para os motores. Se completamente abastecido com 875 galões em cada tanque, o peso do combustível é de cerca de 3.300 quilos, ou seja, mais de três toneladas.

A tubulação de borracha era reforçada por meio de uma tela metálica que envolvia a parte externa da mangueira, não só para suportar a pressão do peso do combustível, como também para proteger o tubo contra eventuais impactos de projéteis inimigos. Além disso, o tubo era do tipo auto-vedante (self-sealing), para evitar eventuais vazamento. Era prevista a substituição periódica dessas tubulações.

A válvula de distribuição do combustível tinha as posições “Tank to engine”, que ligava um tanque ao motor correspondente, e a posição “Cross-feed” (alimentação cruzada), que permitia que cada tanque alimentasse os dois motores simultaneamente. Dessa forma o nível de combustível estaria sempre o mesmo nos dois tanques, pois o consumo de um tanque seria o mesmo do outro.

Iniciemos a narrativa do que aconteceu.

O curso de Piloto de Patrulha ministrado no 1°/2° G.Av. sediado em Belém a 12 Aspirantes formados em dezembro de 1951 pela Escola de Aeronáutica do Campo dos Afonsos no Rio de Janeiro, se constituiu em um enorme sucesso reconhecido pelos altos escalões da FAB. Todos os formando cumpriram o previsto no PIPE – Programa de Instrução e Padrões de Eficiência para as Unidades de Patrulha, tendo recebido o diploma de Piloto de Patrulha e cartão de voo por instrumentos, uma raridade na época. Devido ao grande sucesso obtido em 1952 o Estado-Maior da Aeronáutica matriculou em 1953 mais 23 Oficiais, oriundos principalmente da Base Aérea de Natal, mas também de outras unidades.

O coroamento do curso consistia na participação do Esquadrão nas manobras a serem realizadas pelo CTASAN (Curso de Tática Anti-Submarino Aeronaval) no Rio de Janeiro.

Foi decidido que o Esquadrão se deslocaria com cinco aviões, cada um deles com mais de dois pilotos, para que todos os alunos pudessem participar dos exercícios com a Marinha.

Um dos aviões escalados como avião reserva, o PA-10 6520, era o avião do Comandante da Zona Aérea e havia sofrido várias modificações no Parque de Belém para adaptá-lo, também, para o transporte de Autoridades. O compartimento das macas foi transformado em sala de estar forrada, com piso e iluminação adequada. Além disso, foram instalados drenos nas cavernas dos compartimentos.

Tais drenos tinham a finalidade de, quando abertos no solo, deixar escoar por gravidade eventuais infiltrações de água durante o período em que estivesse n’água. Além das modificações feitas no Parque, teve um dos seus motores substituído. Após o término dos trabalhos foram realizados os voos locais de experiência previstos, tendo o avião sido considerado disponível para se deslocar para o Rio de Janeiro.

Para a primeira etapa Belém-Recife todos aviões foram abastecidos com 1.000 galões de gasolina, 500 em cada tanque.

Os quatro primeiros avioes decolaram com pequeno intervalo de tempo. O 6520 tripulado pelos pilotos Tenentes HOFMANN, SIUDOMAR e CAVALCANTI foi o último a decolar, pois era o avião reserva. Subiu para 9.000 pés, acima de um compacto colchão de nuvens e passou a voar sob um céu azul, sem turbulências.

Após 5 horas e 10 minutos de voo tranqüilo os dois motores começaram a ratear e, em seguida, pararam completamente de funcionar. Ouviu-se um tétrico silêncio a bordo! O avião prosseguiu, agora em voo planado sobre o colchão de nuvens. Pela navegação estimada o avião deveria estar nas proximidades do Rio Acaraú, um rio que estava sempre desenhado no mapa, mas que permanecia seco a maior parte do ano.

A torcida para que ele estivesse cheio era grande. Após descer dentro do colchão de nuvens, ao atingir 4.000 pés e já com contato visual com o solo, foi localizado o leito do rio Acaraú completamente seco. Foi uma terrível decepção para todos. Repentinamente foi avistado um ponto brilhante parecendo um açude.

O mapa não acusava nenhum açude naquela região. Na medida que o avião se aproximava do local brilhante, ía se delineando uma superfície de água cada vez maior. Era um açude! Um açude novo, cheio e desobstruído! Quando o avião atingiu 2.000 pés e os pilotos se preparavam para nele pousar, foi enviada mensagem, por telegrafia, à Fortaleza nos seguintes termos: “Ambos motores parados, tentaremos pouso de emergência no açude de Acarau-Mirim” (nome de batismo dado pelos pilotos, pois o açude, que ainda não tinha nome, ficava próximo a uma cidadezinha identificada como tal).

Essa mensagem também foi enviada em fonia VHF, às cegas, quando o avião já estava se aproximando para o pouso. Como ambos motores estavam parados, sem gerar energia elétrica, a operação de baixar os flutuadores, feita por um motor elétrico, acabou de drenar a carga restante da bateria, fazendo com que a mensagem fosse interrompida, o que levou o piloto do quarto CATALINA, Tenente ALUÍSIO, a acreditar que o 6520 havia batido em algum acidente do terreno. Não havendo nenhum açude conhecido com essa denominação, o Controle Fortaleza resolveu enviar vários aviões, da Base e outros aviões civis, a todos os açudes conhecidos.

Os quatros outros CATALINA pousaram em Fortaleza para eventual apoio SAR ao 6520.

O açude estava cheio e sem obstrução, aguardando data para sua inauguração oficial pelas Autoridades estaduais. Só que o 6520 antecipou a inauguração! O pouso foi efetuado com perfeição e o avião foi ancorado próxima à margem.

Os moradores de Acarau-Mirim acorreram ao local, pensando tratar-se um avião que conduzia autoridades para a inauguração do açude!

Passado o susto e as eufóricas manifestações da tripulação e passageiros pelo desfecho feliz do problema, foram iniciadas as análises e investigações para determinar a causa do problema. Ficou-se sabendo que, durante o voo, foi observado pelo mecânico (novo e com pouca experiência no avião) que havia um possível erro nos indicadores de combustível, pois um indicava zero e o outro indicava 500 galões. Uma inspeção visual nos tanques confirmou a indicação dos liquidômetros: um tanque estava completamente vazio e o outro com mais da metade cheio.

Voltamos, novamente, ao sistema de combustível do CATALINA. Na tubulação que alimentava o motor havia uma torneira para fechar a alimentação enquanto o motor estivesse fora de seu berço, para evitar que a gasolina do tanque derramasse pelo tubo aberto. Sempre que um motor fosse substituído, a torneira era fechada; após a instalação do motor e a re-ligação da mangueira de alimentação, a torneira era aberta e frenada nessa posição.

Ora, com a explicação acima não é preciso ser nenhum Sherlock Holmes para saber o que aconteceu. O motor foi instalado no Parque, mas a torneira instalada na tubulação “Tank to engine ” nas proximidades do motor não foi aberta. Um tanque, com a válvula distribuidora na posição “Cross-feed” passava a alimentar ambos motores. Por essa razão a falha não foi detectada nem nos voos de experiência, nem durante o voo de translado. O mecânico não reportou ao piloto que o nível de combustível estava baixando num dos tanques, mas permanecia estável no outro tanque. Isso confirma a afirmação de que “o acidente de aviação normalmente é devido a um somatório de erros”.

Mas esse não foi o único erro cometido no Parque de Belém.

A experiência de operação n’água indicava que, muitas vezes, um pouco d’água se infiltrava para dentro da fuselagem, talvez por uma vedação não perfeita entre as chapas do casco do avião. Essa água, quando o avião voltava para sua sede, era retirada com o auxilio de canecas ou de bombas de sucção.

Para evitar esse trabalho, foi decidido fazer uma série de furos em algumas cavilhas de cada caverna do casco e neles instalar bujões, presos à cavilha por uma correntinha. Se fosse constatada a presença de água em alguma ou algumas cavilhas, bastava que o bujão fosse desatarraxado para que a água escoasse para o chão.

Após o susto do pouso no lago, alguns passageiros constataram que suas bagagens, postas sobre o fundo da fuselagem, estavam muito molhadas. Uma inspeção visual no local constatou que o fundo do compartimento estava inundando. Constatou-se a ausência de um único bujão vedando os orifícios. O pessoal do Parque de Belém havia feito os orifícios para a instalação dos drenos nas cavilhas das cavernas, mas não havia instalado os respectivos bujões!

Ao verificar que havia um princípio de inundação na parte interna do casco do avião e antes que a inundação atingisse proporções maiores, foi tomada a decisão de efetuar uma decolagem imediata. Foi dada partida no APU e, em seguida nos dois motores. Tão logo o avião atingiu as proximidades de uma das margens que oferecia mais espaço para a decolagem (o açude não era muito grande) o avião foi alinhado, os motores foram acionados para potência máxima e PATA-CHOCA ganhou altura.

Por razões de segurança, o avião subiu em espiral até 9.000 pés e então chamou a Rádio Fortaleza informando a decolagem do açude e a hora estimada em Fortaleza. Houve um espanto geral. Ninguém acreditava no que estava ouvindo e pediam confirmação da mensagem. De sobre o açude até a chegada a Fortaleza os rádios de bordo eram poucos para atender a todas as chamadas de aviões engajados na busca pedindo detalhes, manifestação de júbilo e cumprimentos pelo êxito alcançado.

Após o pouso, na área do pátio sob o CATALINA formou-se um pequeno lago devido à água que escoava pelos drenos aberto. Parecia que a PATA-CHOCA estava “apertada para ir ao banheiro”!

O relato do então Tenente SIUDOMAR termina assim “…….e, em pleno Ceará seco, um açude novo, cheio de água, desobstruído de obstáculos, dentro do nosso alcance……só porque Deus quis!!!

Autor Cel. Av. José de Carvalho

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